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  O que é a Defesa Pessoal?  
por Stefan de Moncada

« Pode-se definir sumariamente a defesa pessoal como o conjunto de elementos que permitem a uma pessoa agir de maneira justificada para se proteger a si ou a terceiros contra um potencial agressor.

O significado da defesa pessoal foi ganhando diferentes contornos ao longo do tempo. Aparece em primeiro lugar nos meados do século XIX associado ao boxe inglês. Nessa altura na Europa treinava-se Boxe, Savate, diversos sistemas de combate com paus ou espadas, como por exemplo o Jogo do Pau em Portugal ou a Canne em França, a esgrima, o tiro ao arco, o tiro com arma de fogo e também já se conhecia o Jiu-Jitsu japonês. 

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Começam então as primeiras reflexões, no início do século XX, em torno “da defesa na rua” como podemos ver em obras tais como: 100 maneiras de se defender na rua sem armas, por Émile André (1905) ou ainda Como defender-se sem armas, por Salmson Creak (1924), por exemplo.

Durante a segunda metade do século XX vemos o maior crescimento das artes marciais e dos desportos de combate. No cinema cria-se o mito do mestre invencível e a ideia de que a maior parte dos conflitos se conseguem resolver através de técnicas tal como estudadas no dojo. A ficção do cinema influencia assim o nosso imaginário e, na falta de experiência real de combate, a nossa perceção da realidade. O ensino das artes marciais tradicionais também permanece muito rígido em volto de muitas formas e coreografias – longe do combate real e caótico dos campos de batalha ou da violência urbana e doméstica. Os manuais de defesa pessoal proliferam mas, a maior parte deles, não passam de um catálogo de técnicas marciais, muito variadas, demasiado complexas e muitas vezes inadaptadas face ao stress de uma situação real.

 

No final do século XX, muitos especialistas reconhecem o limite da abordagem tradicional das artes marciais. Embora o Krav Maga e o Systema – ambos métodos de combate de origem militar, já existissem, ainda eram pouco divulgados. Há portanto uma tomada de consciência da pobreza e limitação dos métodos clássicos de defesa pessoal no sentido em que há uma falta de pragmatismo e realismo. Emergem então métodos de defesa pessoal com conteúdos próprios muito diferentes dos diversos estilos tradicionais de artes marciais. Pode-se mencionar, por exemplo, pessoas como o Tony Blauer e Richard Dimitri na América do Norte da década de 1990, Robert Paturel e Charles Joussot em França ou ainda, Geoff Thompson em Inglaterra, apenas para lembrar alguns, que impactam consideravelmente o conceito e a prática da defesa pessoal.

Desenvolvem-se assim, métodos mais adaptados ao combate de rua que treinam tanto a parte pré-agressão (deteção e dissuasão), como o pós-agressão (traumas, cuidados de saúde, vingança e processos legais), que foram completamente retiradas do ensino tradicional das artes marciais e desportos de combate. Reduzem-se e simplificam-se o número de técnicas ensinadas para melhorar a sua apropriação. A aprendizagem das técnicas faz-se mais no stress e com situações próprias – scenario based trainings, que procuram aproximar-se o quanto possível do real do ponto de vista da ansiedade, tensão, efeito visão túnel, etc. A defesa pessoal começa assim a criar-se como disciplina à parte, emancipando-se da sua origem de combate ritual oriunda das artes marciais tradicionais. Vai buscar algumas técnicas “proibidas” dos desportos de combate (ex: cuspo, dedos nos olhos, golpes ao pescoço ou aos genitais, etc.) e torna-se assim, a pouco e pouco, num conjunto de competências que procuram prevenir, detetar, evitar, antecipar e gerir da melhor maneira uma situação de agressão e suas diversas consequências. Contudo, os limites dos métodos de defesa pessoal são, desde logo, importantes e muito claros:

  • não existe nenhuma solução milagre para nenhum conflito;

  • é impossível simular uma situação de agressão real num ambiente de treino seguro.

 

Hoje em dia, um dos desportos de combate mais em voga é o MMA – Mixed Martial Arts, porque é considerado aquilo que se aproxima mais de um combate real, tendo em conta que é um combate de um para um, com regras definidas e sem armas. É um desporto de combate que permite uma grande variedade de técnicas traumáticas, golpes, imobilizações e projeções. Pode-se afirmar, nesse sentido, que todos os estilos de luta que envolvem sparring, combate, pressão ou resistência, submissões ou knock-outs são o que se aproximam mais do combate “real”. Mas mesmo aí muita coisas difere da rua pois, a realidade não se limita exclusivamente a um combate físico de vida ou morte. Pode ser um caso de manipulação psicológica, agressão verbal, agressão física dissimulada e gradual. Enfim, a realidade é muito mais complexa e diversificada do que uma sessão de sparring em alta intensidade. Além do mais, num desporto de combate pressupõe-se que o combate é consensual, enquanto que os atos da extrema violência praticados na rua não o são. E isso é um dos pontos mais importantes para compreender o espírito da defesa pessoal: a potencial vítima nunca está à espera ou disposta a ser agredida e, segundo algumas estimativas, em mais de 60% dos casos, o agressor é conhecido da vítima e os ataques são emboscadas. Ora, ninguém está necessariamente à espera de ter de se defender de um amigo, vizinho, familiar ou marido, nem existem defesas para emboscadas. É muito difícil ensinar, num clube de artes marciais, a ver os mecanismos de manipulação psicológica e como reagir face a eles. É muito difícil ensinar a ver os sinais de que uma pessoa tem comportamentos de risco e assim, aprender a prevenir ou atenuar certas agressões ou situações de violência doméstica e abusos que daí possam decorrer. No entanto, a essência da defesa pessoal situa-se aí mesmo.

 

Podemos levantar uma questão pertinente: se o MMA é um dos desportos de combate mais “realistas”, porque é que eu, enquanto professor de artes marciais, não treino MMA? Estarei eu simplesmente a enganar-me ao treinar outros estilos? Não treino MMA porque considero que existem muitas outras maneiras de nos prepararmos para um confronto físico e que não passam sempre todas por um combate clássico de um para um em alta intensidade. Outra razão deve-se ao facto de o real ser impossível de reproduzir num ambiente de treino seguro e não se deixar limitar por nenhum tipo de velocidade ou intensidade. Nesse sentido, acho importante variar nas intensidades e regras para estarmos livres de nos adaptar ao que realmente acontece. Treinar sempre de maneira “real” em alta intensidade, além de ser muito perigoso, reproduz sempre o mesmo tipo de treino. Não introduz variedade nem diversidade, elementos que caracterizam a realidade e fundamentais para a integração de novos movimentos. Além disso, também acredito que o meu treino deve servir para me dar mais saúde e força, sem as quais não serei tão eficaz em combate. Se o meu treino das artes marciais me prejudica mais a nível físico ou mental porque é demasiado “real”, então está a fazer exactamente o oposto do que deveria. Diga-se de passagem que os atletas de alta competição, mesmo os de MMA, diversificam imenso os treinos. Têm a especialização deles, como é evidente, mas não estão sempre a combater em alta intensidade porque senão nunca estarão em condições para o dia do combate. Esses treinos mais puxados representam possivelmente apenas 10% do treino deles. Mas atenção, eles passam literalmente o dia todo a treinar, lá está, como o seu treino não se limita exclusivamente ao combate em máxima intensidade, podem estar a treinar muitas outras coisas. Para adquirir movimentos novos e precisos, o cérebro aprende melhor se estiver num ambiente mais descontraído, em vez de estar sempre a lutar pela sobrevivência. O nosso sistema nervoso tem de estar calmo para começar a consolidar as bases e a precisão dos gestos que necessitam de motricidade fina. É certo que, por exemplo, um piloto de corrida precisa de executar movimentos de alta precisão em alta velocidade. Mas para dominar esses movimentos, o piloto tem de aprendê-los primeiro num ambiente seguro e vai aumentando a velocidade de forma gradual. Depois de as bases estarem consolidadas, essa evolução faz-se naturalmente. Mas a precisão do gesto é sempre mais importante do que fazer tudo rápido. Costumo citar nas minhas aulas a a expressão atribuída a um pistoleiro americano do século XIX que diz o seguinte: "precision is more important than speed. You have to learn to be slow in a hurry."

 

É evidente que, pessoalmente quando treino, tento sempre fazer o melhor que posso mas sem nenhuma pretensão de ser imbatível, nem de representar a “realidade”. As sessões de sparring e a minha própria experiência tem me mostrado justamente que “quem vai à guerra, dá e leva”, mesmo o maior dos mestres. Procuro, antes de mais, aprender a mexer o meu corpo da melhor maneira, aprender coisas sobre mim mesmo e libertar-me de tudo o que me possa bloquear ou limitar física e mentalmente. Conhecer bem a biomecânica humana e treinar variando as velocidades e intensidades é uma condição fundamental para nos prepararmos para o dito “real”. Sermos fortes e confiantes, conhecedores das nossas próprias capacidades também é muito importante e para isso não é necessário estar sempre a combater em força total tentando criar o máximo danos possível ao nosso parceiro de treino. Existem vários caminhos e temos de saber escolher aquele que é mais adequado ao nosso perfil psicológico, físico e à nossa idade. E além de termos de ter confiança nas nossas habilidades, temos de permanecer humildes para continuar a aprender e desafiar-nos para não criarmos ilusões sobre nós-próprios.

 

Umas das grandes diferenças entre o combate “real” e o combate desportivo já vimos que está, portanto, na dimensão psicológica. Os desportos de combate referem-se a um combate “ritual”, um duelo entre dois oponentes com regras e limites estabelecidos, enquanto que uma agressão na rua pode significar um combate pela sobrevivência. Penso, por exemplo, no que disse uma vez o mestre Martin Wheeler. Num certa ocasião, ele estava a treinar quando Vladimir Vasiliev lhe terá dito: “num ringue, tu despedaçarias muita gente que conheço… mas eles matar-te-iam”. Na defesa pessoal insiste-se mais na ideia de sobreviver do que de ganhar, o que muda diametralmente a nossa atitude mental perante um conflito e escolha dos movimentos a executar. Uma pessoa pode não parecer perigosa e no entanto ser letal. E ao contrário, lá por uma pessoa parecer perigosa, não quer dizer que o seja. Basta termos alguma experiência de combate para compreender isto. Todos nós já fizemos a experiência de nos sentirmos intimidados por alguém que, depois ao combater com ela, revelou ser um alvo fácil a dominar. E, ao contrário, todos nós já subestimamos alguém que nos fez depois pagar por isso. Se isto não for suficiente, basta ver as notícias: “mulher mata marido”; “filha mata pais”; “homem de 70 anos mata vizinho”, etc. De certeza que estas pessoas não tinham um aspeto perigoso. Se formos também a ver na História da espionagem ou assassinatos, muitos agentes pareciam completamente “normais” e inofensivos e é justamente por isso que eram eficazes – porque eram subestimados.

 

Eis algumas distinções importantes a reter entre o espírito da defesa pessoal e os desportos de combate:

  • nos desportos de combate não se treinam os princípios de prevenção, saber como evitar e des-escalar o conflito verbal e físico;

  • não são ensinados as diferentes expressões da violência, as suas razões e os sinais de que uma pessoa pode vir a ser perigosa;

  • não se aprende a gerir o início de um conflito (verbal ou físico) – nos desportos de combate o início do conflito é dado pelo árbitro;

  • o stress de um combate desportivo (pressão) difere do stress da rua (medo);

  • não aprendemos a gerir múltiplos adversários (cúmplices ou testemunhas);

  • não se aplicam golpes nos alvos proibidos, tais como nos olhos, nuca, garganta, partes genitais, etc.

 

Os desportos de combate ensinam muita coisa positiva, mas não deixam de ser combate. Na maior parte dos casos de violência social, pode-se evitar o confronto apenas adotando uma atitude adequada. E, muitas vezes, a atitude mais adequada reside no des-escalar e esquivar do conflito. O confronto físico tem de ser o último recurso e não a nossa primeira reação. Por falta de conhecimento de nós próprios, envolvemos-nos em luta pelos motivos errados. Confundimos a defesa do nosso orgulho e honra (ego), com a defesa da nossa vida. A legítima defesa não é defender o nosso orgulho através da violência física. A legítima defesa pressupõe que não queremos em nenhum caso participar na confrontação física em que nos encontramos. Pressupõe que nos queremos afastar da ameaça a todo o custo. Esta noção é fundamental porque só assim é que teremos a compreensão do tipo de envolvimento em que nos encontrarmos (violência social ou violência anti-social). Se a pessoa que está à nossa frente não procura o conflito físico mas só está irritada, e se eu conseguir ter uma atitude apropriada, então conseguiremos resolver o conflito a bem. Se nos encontramos face a uma pessoa com um perfil anti-social (sociopata ou psicopata) e que nos marcou independentemente de lhe darmos o “braço a torcer”, então saberei que é altura para agir porque estou a ser forçado a defender-me fisicamente. Só podemos detetar o perfil psicológico da pessoa que temos em frente se dialogarmos com ela primeiro, coisa que não acontece se entrarmos logo em confronto com ela. Portanto, se nos precipitarmos logo para o combate porque temos medo ou somos ansiosos e impacientes, como é que sei que tipo de pessoa é que tenho à frente se estou sempre a projetar a mesma situação?

O diálogo é fundamental para saber que soluções temos e com que tipo de pessoa é que estamos a lidar. Além disso, o diálogo obriga a controlar os nossos impulsos. Não nos esqueçamos que é isso também que nos torna humanos e que nos separa dos animais que agem impulsivamente. Vladimir Vasiliev costuma dizer uma frase que, parecendo banal, não o é de todo quando as emoções se envolvem: "when you strike someone, remain human."

 

Uma boa maneira de reduzir as chances de sermos “marcados” como vítimas é aprendermos a ser mais responsáveis e a dar atenção aos diversos aspectos da nossa vida quotidiana. Não devemos ser paranoicos mas também não devemos ser distraídos. Portanto, temos de encontrar um equilibro entre a responsabilidade da nossa segurança pessoal e a capacidade de viver sem estarmos demasiado limitados por medidas de segurança. O elemento mais importante é viver plenamente e estar naturalmente presente e atento ao que nos rodeia. Se vivermos mais “presentes” e atentos, será sempre mais difícil para um agressor apanhar-nos desprevenidos. Os predadores procuram sempre pessoas distraídas porque a eficácia dos seus ataques jaz na surpresa. Não nos esqueçamos também que a maior parte das agressões são emboscadas. Se retirarmos o elemento surpresa da equação, grande parte da eficácia de um ataque é suprimida apenas através da nossa atenção e presença – qualidades psicológicas e não técnicas marciais.

 

Para concluir, é fundamental compreender que a violência não se deixa limitar por nenhuma arte, desporto, sistema ou estilo de combate. A violência não é tradicional nem cultural e não segue nenhum código de conduta. A violência despreza cintos, graduações, força, tamanhos e técnicas. A violência manifesta-se por todo o tipo de agressões (físicas e/ou, sexuais), todas as formas de abusos, violações, assaltos, roubos, pedofilia, homicídios, raptos, confrontos, traumas e vinganças. A violência é humana. Ela esconde-se nos nossos comportamentos, na nossa psicologia, emoções e intuições. Para ser compreendido, este tipo de violência deve ser encarado como um estudo científico do comportamento humano e apoiar-se em investigações, observações e verificações e não se deve limitar pelos aspectos técnicos, artísticos que são treinados nas artes marciais. É por isso que, na minha opinião, as técnicas são sempre secundárias face a estas considerações. Não deve ser o nosso conhecimento técnico a ditar as nossas ações. Primeiro, tentamos compreender o tipo de problema que temos à frente e só depois é que saberemos o que fazer. O conhecimento técnico deve estar ao nosso serviço e para isso não devemos agir impulsivamente, nem ter um comportamento viciado no mau sentido pelas artes marciais e desportos de combate. Não devemos procurar lutar desnecessariamente só porque supostamente sabemos defender-nos. Pode rapidamente virar-se contra nós, sem nos darmos por isso.

Ser um especialista em defesa pessoal significa portanto ser antes um perito na natureza humana porque significa ser capaz de entender emoções e psicologia humana. Voltamos sempre ao mesmo: ao auto-conhecimento. Ser um especialista em defesa pessoal é ter um grau de consciência suficientemente elevado para agir atempadamente; é ter uma intuição afiada para pressentir intenções e finalmente, é querer mais que tudo evitar ou resolver o conflito da melhor maneira possível. Ser bom em defesa pessoal significa também ser um ser humano compreensivo que trata os seus com empatia, respeito e dignidade e que, quando estes elementos não são suficientes, é capaz de o reconhecer e agir de maneira fria e implacável. Fazer o que tem de ser feito, como um profissional que age executando a sua função, sem mais nem menos. Como e o quê? Não há resposta. A nossa única bússola, além da habilidade técnica, é interior. Acho a frase de Santo Agostinho bastante adequada para aqui: “Ama, e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.” »

Lisboa, 2024

Stefan de Moncada

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